quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Reanimação

Cai uma gota de água numa taça de cristal semivazia, numa sala às escuras onde se encontra apenas um silêncio moldável de argila branca que avança e retrocede num continuum bafiento com os movimentos da nossa respiração. Estamos lá e não estamos. A gota de água materializa-se do nada. O cristal da taça funde-se com o negro niilista que a apaga e descaracteriza, perdendo-se sem a luz que se refracta e reflecte nas suas múltiplas facetas.
Há um quê de familiar no som originado pela gota de água que se mistura, abdicando da sua existência individual, com a restante água já contida na taça de cristal. De repente, já não o é. Fica por breves instantes a recordação da sua efémera presença enquanto as ondas sonoras se difundem e ecoam dentro de um espaço limitado por paredes que não existem, por um ar pesado e palpável que não se respira. Este espaço está dentro de nós, naquele canto da nossa mente que visualizamos sempre que, de olhos fechados, nos concentramos na primeira folha de árvore que, no Outono, se desprende do ramo e viaja até ao chão.
Por vezes, vivemos dentro desta dimensão, esperando que se abra a porta, numa das paredes que não estão lá e que deixe entrar a luz e sair a alma presa por fortes correntes de aço invisíveis que a atordoam, atrofiam e dissolvem numa comunhão perversa com a escuridão.
A porta abre-se então, a taça despedaça-se e o espectro cego anima-se de novo, devolvendo a um corpo inerte de tez marmoreada a esperança de uma vida que, adocicada, o deleita como um néctar essencial.

1 comentário:

Luís Monteiro disse...

Criar laços entre ciência e sensibilidade só está, realmente, ao alcance de alguns.
Excelente texto, João!