domingo, 19 de julho de 2009

Sapatos Pretos

Esta noite, dá-me a tua mão e vem dançar comigo. Calça aqueles sapatos pretos de salto alto, de que tanto gostas; põe um vestido fresco e vem. A noite está fantástica! Sente-se um calor que aquece os corpos, temperado por uma fresca brisa suave que traz o aroma leve das flores, que adocica a fragrância etérea que só a tua pele emana. Hum... vejo no teu acenar consensual e nesse olhar de soslaio que te agrada a ideia.
O luar fulvo que se avista da janela convida-nos a perdermo-nos nas ruas da cidade. Damos um salto ao Bairro. Vou levar-te àquele sítio onde já querias ter ido há muito... ali, quem sobe a Calçada do Combro e vira pela Atalaia, sabes? Não querias dançar um Tango? Pois então...
Onde estás? Em frente ao espelho, claro. É minucioso esse ritual com que pintas os lábios, com que aplicas o rímel, a forma hipnotizante como te perfumas. Já alguma vez te disse como és bela? Vejo que vale a pena, se a recompensa for um beijo como este. Sempre que me beijas o meu coração pára; deixa de bater por momentos como se o corpo não mais precisasse dele por se ver animado de uma outra força, para além da vida, para além dos dogmas da Biologia e da Física. Beija-me outra e outra vez, para sempre, como se o tempo se perdesse entre os nossos lábios e pudessemos levá-lo ao engano pela eternidade fora.
Mas esta noite é para ti. Põe qualquer coisa sobre os ombros, porque pode ficar frio mais tarde e vamos.
O som seco e apressado dos nossos passos sobre a calçada ecoa com a vontade que temos de ficar para sempre juntos. A nossa respiração traduz aquilo que os nossos olhares gritam sempre que se encontram. O meu braço traz-te gentilmente consigo embora com a força que um ser alado empregaria para salvar aquilo que tem de mais precioso.
Eis-nos chegados, enfim. Só a vinda, pelo prazer de partilhar um simples passeio a pé contigo, já me teria deixado feliz. Mas pousemos as nossas coisas naquela mesinha do canto que tem as velas acesas sobre a toalha preta e deixemo-nos levar pelas notas do acordeão. Sem darmos por isso, estamos em Buenos Aires... A flor que surripiaste displicentemente da jarra solitária da mesa ao lado e que colocaste sobre a orelha, por entre os cabelos, também ajuda.
Eu levanto a mão esquerda, esperando ansiosamente pela tua. A mão direita passa por baixo do teu braço e sustenta-te o dorso erguido e escultural como o caule de uma rosa branca. As nossas pernas cruzam-se e fundem-se num movimento sincronizado que as nossas mentes não controlam. E, de repente, estamos mais unidos do que nunca. Sempre que expiras sinto o teu calor no meu pescoço. Sempre que os acordes determinam uma pausa na música e os nossos olhares se cingem, sinto que somos um só e... à medida que avanças e recuas com a sensualidade e o ritmo imperioso que a dança exige é a minha alma que te lança numa pirueta coreografada para te agarrar em seguida. Não me pertences, pertences ao Universo; não me és destinada porque seres como tu são destinados às estrelas e têm em seu torno todo o Cosmos em contemplação. E no entanto, aqui estás, a meu lado, nesta noite de Verão em que usas os teus sapatos pretos preferidos para pairar com o êxtase de um andamento a quatro passos, com o rubor efervescente do sangue que te corre nas veias em que pontificam as delicadas pétalas suspensas junto à têmpora.
Amo-te aqui e agora como uma onda que se desfaz no embate contra as rochas. Amo-te tanto que me desintegro na vontade de te ter sempre assim. Amo-te sempre, com a paixão de um Tango Nuevo dançado à luz das velas num qualquer cortiço perdido nas ruas de Lisboa.