quinta-feira, 15 de julho de 2010

Quando os gatos são pardos...

Matziolis sentia que algo não estava bem. Não conseguia sentir-se confortável sob a sua pele como se esta fosse um fato largo que apenas acentuava a sua percepção de estar longe dos outros e de si. Havia um vazio que parecia não conseguir preencher, de dentro para fora. Se, por um lado, a sua mente se dissociava do chão que pisava e os pensamentos seguiam o seu próprio rumo numa farsa intrincada com um pendor emocional inegável, o frio da madrugada e as gotículas de orvalho que se elevavam ao sabor da rarefacção do ar, à passagem do vento cortante, traziam-no de volta à dura realidade. Acelerou o passo, como se corresse apressadamente para algum lado, quando, em vez disso, fugia de outro lugar, ou melhor, de alguém - Matziolis...
Nas ruas de Berlim, as sombras que cobriam os velhos edifícios de leste de um espesso manto de anacronismo, pareciam, no expoente máximo da sua furtividade, lançar incautos olhares sobre a sua figura isolada em jeito de censura. Vindo da Karl Marx Alee, depois de uma passagem por um bar que se assemelhava ao último reduto de frenesim soviético numa bafienta cave da Alexanderplatz, com demasiados White Russians a correr-lhe nas veias, Matziolis conservava uma réstia das suas faculdades mentais mas sentia o corpo totalmente anestesiado e levado por movimentos mecânicos, como que animado por uma incumbência definitiva, dirigindo-se não se sabe exactamente para onde. Sempre que ganhava consciência deste facto, já se encontrava mais à frente e mais à frente, na maior parte das vezes sem saber como.
Matziolis tinha conseguido chegar à plataforma de metro e, andando pelos imensos corredores e galerias subterrâneos, sentia um friozinho na barriga que ora atribuía ao facto de não se ver vivalma àquela avançada hora e num local totalmente isolado, ora à quantidade manifestamente abusadora de álcool que tinha ingerido, sozinho ao balção, ainda por cima.
O plano parecia agora mais simples, apanharia o S-bahn até ao anel periférico da cidade e seguiria a partir daí à superfície, até Shoeneberg onde, no seu apartamento vazio, por baixo dos tratados e artigos que deixara espalhados sobre a cama, pelo menos os seus lençóis o esperavam. Depois de finalmente apanhar o metro, deixando para trás a imagem demasiado evidente de um autêntico atentado ao pudor em decurso mas que, com um misto de reserva e inveja ele aprendera a ignorar numa cidade do Mundo como Berlim, subitamente, o calor da carruagem transmitia-lhe um certo falso conforto, confirmado pela ruborização da sua face. Sem delongas e após aquilo que calcula terem sido breves momentos (poderiam, com a mesma facilidade, ter sido minutos, horas ou dias...) abre os olhos e vê, através da fria janela da carruagem, como quem observa a vida do lado de fora, a fervilhante cidade a acordar para mais um dia de ostensiva beleza e imponência. Parecia quase que o orgulho das vitórias prussianas se espelhavam nos pequenos segmentos do Muro que haviam sobrevivido à passagem intempestiva dos anos e à ira de uma vivência que todos e cada um dos anónimos transeuntes, sabendo que já tinha passado, carregavam ainda às costas, de olhar baixo e com vergonha. Mesmo assim, ainda que não se visse, a estátua dourada que imaginava a brilhar com os primeiros raios de sol da madrugada, mesmo no seio do Tiergarten, fazia com que enchesse o peito de ar e levantasse a cabeça. A era é outra e, se com os anos recentes, Berlim se abria cada vez mais ao que estava à sua volta e abraçava em força a arte, a cultura e a modernidade, a dimensão megalómana e avassaladora da cidade parecia torná-lo mais só. Um entre tantos outros, a perfeita encarnação do blue collar que a cidade via "marchar" todos os dias, ao ritmo da tímida ondulação do Spree e do resfolegante trote dos comboios sobre os carris metálicos, que constituiam as veias e artérias de uma metrópole pulsante, viva...
Após uma troca de estação, com a paragem repentina da carruagem fazendo soar uma voz irritante, que autenticamente lhe fazia lembrar o despertar num campo de concentração, Matziolis levanta-se, titubeante ainda e dirige-se pelas escadas da estação para a rua, encaminhando-se para casa. Por entre as acompanhantes e prostitutas em "saída de turno", que haviam feito de Schoeneberg um bairro de movimento nocturno constante, num misto de Roaring Twenties meeting Apocalipse esperava que no seu prédio típico, construído em torno de um pátio com árvores, os corvos tivessem já começado a crocitante sinfonia matinal, no seu ensurdecedor corvejar de todos os dias.
O habitualmente quase imperceptivel deslizar da chave do portão da rua por entre os pinos da fechadura parecia ecoar numa torturante composição xilofónica dentro da sua cabeça - começava agora a pagar a imprudência de ter cedido perante a a amargura e o cinismo que o dominavam, à desculpa fácil da dança de copos que coreografara durante a noite. A sua bicicleta ainda lá estava, presa pelo quadro a um amontoado de tantas outras que se acumulavam pelo alpendre. Passou por elas displicentemente como um fantasma e iniciou a subida lenta e aparentemente infindável que o levaria ao quarto andar sem elevador, qual Prometeu agrilhoado. Pés limpos no tapete da entrada, porta fechada ruidosamente atrás das costas, cachecol atirado na direcção do cabide, sem lhe acertar e sapatos descalçados ao longo do estupidamente tortuoso caminho pelo minúsculo hall de entrada, até à porta do quarto. Só...
Um rápido olhar pelo quarto, revelava um estilo de vida vazio. Sem fotos de amigos em lado algum. Uma ou duas prateleiras em que se acumulavam, para além de livros técnicos, uns pacotes de bolachas e cereais. Janela sem cortinados de onde se avistava ainda o tronco da mais antiga árvore do pátio, indicando que era velha, pois a copa projectava as suas longilíneas sombras sobre o chão de madeira, sem qualquer folhagem, dada a estação do ano. Nenhum sinal de qualquer toque feminino. Sobre a secretária um estetoscópio, um velho computador ligado com aquele screensaver do windows, lançado há tanto tempo, tempo demais. Sem hesitação, estende os lençóis como quem sacode uma toalha de piquenique, projectando num voo desorganizado todas folhas que se encontravam dispersas sobre o leito. Observa, por momentos, aquela queda aleatória em câmara lenta como que pasmado, mas sereno. Começa a esvaziar os bolsos e com o casaco ainda vestido retira talões, a carteira, o passe de metro, o guardanapo do pequeno-almoço na Dunkin' Donuts da estação de Friedrichstrasse. Deixa cair várias moedas ao chão e ao apanhá-las, com várias tentativas falhadas e alguns desequilíbrios pelo meio, detém-se, por momentos, olhando o brilho da luz do dia numa delas. A sua respiração acelera, o morder do lábio indica uma indecisão, o franzir do sobrolho e a súbita contracção do masséter parecem fazer adivinhar alguma tensão... em que pensa Matziolis? Olhando pela janela como quem olha para dentro de si, lança a moeda ao ar e volta a apanhá-la. Vira-a sobre as costas da mão e... coroa. Abre a janela - tinha razão, os corvos sobre os ramos observam desdenhosamente a moeda que traz entre os dedos e... subitamente... sem aviso...
O sabor metálico e quente do sangue nos lábios, o atrito que sentia junto dos ouvidos ao tentar abrir a boca, os enormes troncos de árvore na horizontal, a moeda que parecia rodopiar ainda sobre o chão, ao longe. Não sentia nada, não pediu ajuda, não respirava porque estava cansado de respirar. Abre-se uma outra janela do pátio central. Um vulto curioso. A janela fecha-se. Sozinho novamente, até que um corvo aterra no frio cimento do pátio, junto das bicicletas. Os olhos fecham-se - assim, sem mais nem menos; sem prenúncio, sem despedidas, sem amor.
A cidade acorda e Matziolis dorme finalmente. O Spree ainda corre, os comboios ainda transportam os cidadãos como formigas, a Potsdamerplatz continua linda! Parece que, com o ouvido encostado ao chão, ainda se consegue ouvir o bater do coração da cidade enquanto a palma da mão de Matziolis, vencida pela inércia, se abre vagarosamente, libertando uma fotografia tirada a preto-e-branco, amachucada, que mostra uma silhueta que mal se adivinha, impressa pela luz com laivos de esquecimento, em papel mate...

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